A ciclista Thalita Hoshino morreu atropelada nesta semana durante um racha com charretes fora da lei no litoral de São Paulo.
Os flagrantes obtidos pelo Fantástico nem parecem deste século: pessoas maltratam animais e se arriscam em corridas pelo Brasil (veja mais a seguir).
“Tá todo mundo muito abalado, né? A gente chora, fica bem um pouquinho. Passa um tempo, lembra e chora de novo,” diz Yuri Hoshino, irmão da vítima.
“A gente quer que esses infratores que fizeram essa atrocidade com ela na praia paguem pelo que fizeram,” afirmou o marido da vítima, Valdomiro Pereira dos Anjos.
Caso em Itanhaém
Era para ser apenas um fim de semana entre amigos nas praias de Itanhaém. “A gente desceu numa quinta-feira de noite, super feliz porque ia passar um final de semana muito top. Quando ela (Thalita) saiu, eu falei três vezes para tomar cuidado. ‘Toma cuidado, amor, por favor'”, relatou o marido de Thalita.
Câmeras de segurança, obtidas com exclusividade pelo Fantástico, mostram duas charretes na rua que leva à praia. O relógio marca 11h28 do dia 23 de março.
No mesmo horário, Thalita Hoshino de Souza, de 38 anos, andava de bicicleta na areia com a amiga Gabriela Andrade.
“Super feliz, tava numa paz indescritível, sabe? E aí eu avistei dois carros e duas charretes vindo na nossa direção. Em alta velocidade, eles estavam correndo mesmo,” contou Gabriela.
O que acontece na sequência não foi registrado por câmeras. “Olhei para ela e falei: ‘Tha, cuidado com o carro.’ Minha preocupação era o carro pegar a gente, né? Aí eu desviei pro lado direito e ela desviou pro lado esquerdo. Ela desviou pro lado do mar. Aí eu só escutei um barulho e quando olhei já tava caída,” descreveu Gabriela.
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Racha de charrete em praia: flagrantes mostram corridas ilegais pelo Brasil — Foto: Reprodução
A corrida clandestina de charretes foi bem no trecho de praia. Os participantes aproveitaram o momento da maré baixa, quando a areia fica mais firme e dura, para realizar a disputa. No momento do acidente, a vítima vinha no sentido contrário ao dos cavalos e foi atingida de frente.
“A bicicleta tinha estourado o pneu, estava inteira torta. E eu já vi ela sangrando muito, estava com hemorragia na cabeça. Eu corri, comecei a gritar que eu precisava levá-la imediatamente pro pronto-socorro porque ela corria risco de vida. Eles saíram correndo e foram embora,” relatou Gabriela.
Às 11h37, as imagens mostram que as charretes saem da praia e voltam pela mesma rua. Seis minutos depois, um homem aparece com as mãos na cabeça.
Segundo a polícia, a pessoa que atropelou Thalita é Rudney Gomes Rodrigues, de 31 anos. Ele foi preso no sábado (29).
“As nossas investigações dão conta que no local estava tendo uma competição, uma corrida entre charretes. A pessoa que em si atropelou a vítima com a charrete, e ele foi embora do local sem prestar socorro,” informou o delegado Arilson Veras Brandão.
Quem levou Thalita para o hospital foi a motorista de um carro que aparece nas imagens. Segundo o delegado, ela é Karina, a esposa do investigado.
“Eu comentei no carro: ‘Quem coloca uma charrete com cavalo na praia? Correndo ainda!’ Aí a moça que estava dirigindo disse que eles precisavam levar cavalo pra passear. Tentando justificar, como se fosse um passeio,” contou Gabriela.
Rudney e a mulher dele tinham um perfil compartilhado numa rede social. Postavam vários vídeos de corridas clandestinas de charretes. A página foi tirada do ar logo após a morte de Thalita. Ela morreu na terça-feira, dois dias depois do atropelamento.
“A gente entra, a gente vê ela. Na hora que a Gabi dá a mão pra ela, ela morre. Ela esperou a gente chegar lá só pra dar tchau,” disse o marido.
Divulgação nas redes sociais e maus-tratos
Corridas como a que tirou a vida de Thalita são divulgadas em vários vídeos na internet, algumas na mesma praia em que Thalita foi atropelada.
Em São Vicente, também no litoral de SP, os corredores competem no asfalto e na praia com banhistas. Em Pariquera-Açu, no interior paulista, as corridas viraram um torneio, com direito a troféu para os vencedores.
Os rachas clandestinos são disputados à noite e até com chuva. O “público” acompanha a pé e de moto.
Em uma das imagens, pelo velocímetro das motos que acompanham o racha, dá para calcular que os cavalos correm aproximadamente a 60 km/h. Para atingir essa velocidade, eles são maltratados.
Na Raposo Tavares, uma das principais rodovias que cortam o estado de São Paulo, um dos cavalos cai durante a corrida.
“As consequências disso são problemas articulares, pode lesionar a coluna, pode ter fratura. Muito raramente esse animal possa sobreviver. Aqui você só trabalha o ego das pessoas e não a qualidade de vida do atleta que seria o animal. Ele não é um carro que você leva na funilaria e arruma”, diz o médico Maurice Gomes Vidal.
Outro cavalo muito machucado participava de corridas clandestinas de charretes. Para voltar a andar foram oito meses de tratamento intenso na ONG Abraço Animal Resgate de Cavalos, em São Roque, interior de São Paulo.
“Tudo isso é proibido. Essa corrida é totalmente clandestina,” afirmou o delegado. “Então existe um procedimento instaurado justamente para apurar essa questão das corridas. Os envolvidos, se haviam apostas, que tipo de apostas existiam”, explicou o delegado.
O que dizem as prefeituras e os acusados
A Prefeitura de Peruíbe disse em nota que, quando toma conhecimento desta prática ilegal, monta uma força-tarefa e segue para o local.
Itanhaém informou que realizou diversas operações com Peruíbe para fiscalizar essa prática criminosa.
A Prefeitura de Pariquera-Açu disse que não tem conhecimento algum dessas práticas ilegais.
A cidade de São Vicente afirmou que vai intensificar a fiscalização.
Em Piraquara, no Paraná, a polícia conseguiu prender os envolvidos em um racha.
“Um indivíduo ali assumiu efetivamente que estava fazendo e que as pessoas que estavam fazendo eram do núcleo familiar dele. Nós não podemos nem mensurar, na verdade, o estrago que eles poderiam fazer na integridade física ou na vida de outras pessoas,” disse o delegado Thiago dos Santos.
As pessoas envolvidas na morte de Thalita podem ser responsabilizadas pelo crime de homicídio doloso praticado na forma do dolo eventual, que é aquele em que o autor assume o risco de produzir o resultado.
“É uma prisão desnecessária, né? Milita em favor dele a presunção de inocência. Ele se apresentou, tem residência fixa”, disse o advogado de Rudney, José Miguel da Silva Junior. Ele também diz que é “prematuro” dizer que ele estava participando da corrida.
Ao ser questionado sobre os vídeos de corridas que ele compartilhava nas redes sociais, o advogado disse não ter tido acesso às plataformas ainda.
A defesa de Karina, esposa de Rudney, negou que ela não tenha prestado socorro imediatamente. “Não condiz com a verdade. Ela prestou socorro e acompanhou até o final”, disse o advogado Luciano Fernandes Ribeiro. “Ela prestou todo auxílio, mas receosa de alguma represália, alguma coisa, acabou omitindo realmente, mas não por se omitir do fato, e sim por receio de receber qualquer represália”, completou.
Enquanto tenta se recuperar da perda, o marido de Thalita descobriu um último registro deixado por ela. Uma carta que só deveria ser aberta por ele em junho, quando o casal sairia de férias.
“Ela fala assim: ‘O mundo pode ser sombrio, incerto e até cruel, só que realmente importa é que vamos enfrentá-lo juntos. O que quer que o futuro nos traga, você sempre vai ser minha luz.’ Ela escreveu isso pra mim! Tenho certeza de que ela está feliz lá em cima e ela quer nossa felicidade aqui embaixo… porque ela era vida!”